Fazia tempo que não saía de casa para dar uma volta com as gurias. O corre-corre do cotidiano sempre me aprisiona de um jeito ou de outro. E quase nunca consigo me desvencilhar dos horários, tarefas, prazos. Nossa! São tantas coisas, é tão difícil conseguir deixar isso de lado e ceder aos convites para uma passadinha descontraída num bar, um vinhozinho, uma cerveja, jogar papo fora, relaxar, enfim. Mas naquele dia aceitei, e graças à insistência das minhas – benditas! - amigas. Beber, fumar, rir de tudo. Só Deus sabe o quanto as amo, o quanto esses momentos com elas me fazem bem. Sinto tanta falta. Enchem-me de encanto. Amigas verdadeiras e alegria: o que seria da minha vida sem isto?
_Deixa que eu pago. Outra hora a gente acerta. - disse, e fui logo procurando a carteira na bolsa. Ver as gurias depois de tantos dias de ausência me fazia ficar mais generosa. Tinha recebido na semana anterior, duas ou três cervejas não iam pesar no orçamento. Apreciava fazer isso, quando podia. Não por esperar retribuição, nada disso, mas por achar que assim, de alguma forma, expressava meu carinho, minha amizade por elas. Generosidade, sim: dar sem esperar receber. Era uma coisa que não fazia com qualquer pessoa, somente com aquelas as quais realmente me sentia em casa, que haviam transposto comigo a barreira ordinária da impessoalidade das relações dominantes neste mundo conturbado. Gostava delas, e esse era um modo de dizer. E assim fazia com o maior prazer.
_Apura, Clara, que daqui a pouco o ônibus passa!
_Tô indo, calma!
No meio do monte de coisas que havia na bolsa, nem sempre era fácil me localizar. Batom para cá, escova para lá, carteira no fundo. Peguei. Abri e procurei a nota de cinqüenta reais que havia enfiado dentro de um dos seus “esconderijos secretos”. Não gostava de deixar notas de valor maior no compartimento próprio para o dinheiro. Já fui assaltada antes. Na ocasião, o ladrão levou a bolsa inteira. Mas uma vez aconteceu que uma amiga minha, ao ser abordada por um bandido com uma faca na mão, abriu a carteira e disse: “Tudo que tenho é isto!” e entregou uns trinta reais para o ladrão, que os pegou e imediatamente saiu correndo. Ocorre que, numa das partes mais escondidas, ela tinha posto cem reais, que felizmente acabaram salvos. Sei que isso é bobagem, pois o comum deve ser o assaltante levar tudo. O certo deveria ser fazer como um outro conhecido meu, que saía com vinte pilas na carteira e o grosso do dinheiro deixava na meia ou na cueca. Quando lhe assaltaram, ele conseguiu ficar com a maior parte da grana desse jeito. Até já fiz isto, botar o dinheiro na meia, etc., mas, às vezes, simplesmente, talvez devido a uma quantidade menor de paranóia que estivesse no dia, colocava mesmo na parte escondidinha da carteira.
Puxei a nota de cinqüenta, e então a surpresa. Enquanto estendia a mão para a moça do caixa, escutei um tilintar metálico. Alguma coisa, que havia saído de dentro da minha carteira no momento em que eu tirava o dinheiro, se estatelara contra o chão. Olhei de imediato para baixo e vi um pequeno pingente, uma delicada letra C que guardava uma coloração típica de metal envelhecido, como se essa opacidade estivesse ali para compôr uma espécie de vazio no lugar onde outrora houvera um brilho prateado.
De pronto, um vácuo. A visão daquela bijuteria trouxe, involuntariamente, para meu derredor, outro plano de existência que se sobrepôs ao do presente. Juntei-a. E tão forte a olhei nesse segundo que ela pareceu também me olhar, produzindo com esse gesto um redemoinho de sensações que me penetrou, remexeu papéis velhos guardados no fundo da alma agora perturbada, e os revirou, de modo a colocar delicadamente para cima o lado das folhas em que estavam rabiscados sonhos antigos, gastos e acabrunhados pela poeira dos anos. De súbito, parecia que as cores e as formas do lugar onde eu estava adquiriram tonalidades foscas, isto é, meras variações de cinza, do mais claro ao mais escuro. O vozerio cessou, a música foi sugada por um buraco negro. Todas as coisas assumiram o segundo plano. Uma especialíssima comoção tomou conta de mim. Estremeci, tive a impressão de não estar num boteco de quinta, tomando um vinho barato com as amigas. E nem numa noite de inverno, com roupas grossas a me cobrir, e nem com o nariz congestionado, em razão de um resfriado contra o qual lutava. Um misto de leveza alegre e sutil nostalgia me transportou para um dia de primavera cálida, com folhas secas outonais que estalavam sob meus pés assim que estes as pisavam. Sim, primavera e outono... era esta a emoção contraditória que me envolvia. E também me batiam carinhos, afagos e fascinações. E o sopro de um vento azul me preenchia deliciosamente. E um cheiro de pele masculina, quente e recém saída do banho, acariciava de leve as minhas narinas. E eu, ali, inquietamente calma, parecia transitar entre uma esfera e outra, a da fumaça de cigarro do bar, que insistia em me invadir, e o aroma fresco, de água e sabonete, de um corpo nu a ansiar o calor de outro corpo, e se estirar em lençóis brandos de uma cama confortável. Não era uma alucinação, nem uma fantasma, era apenas uma recordação que vinha do passado desferir um beijo tépido contra minha face em comoção.
Foi quando um “Nós vamos perder o ônibus!” me trouxe de volta àquele mundo cercado de cadeiras de palha, mesas de madeira e música agradável, com a moça do caixa a me olhar e a me sorrir, simpática.
_Obrigada! - Peguei o troco e saí.
*
No ônibus, a conversa girava sobre o trabalho, os estudos, os planos futuros e os amores. Os próprios, os alheios, e também os de terceiros. Trivialidades, enfim. Mas não esquecia do pingente. Uma a uma, as amigas foram descendo até que só restei eu. Eu, de cabeça inclinada, encostada no vidro da janela, e as idéias longe. Talvez, naquele instante, tivesse o semblante plácido como um lago. Apenas eu de passageira. O cobrador a contar dinheiro e o motorista a pisar fundo para terminar a última volta da noite.
Desci três paradas antes da minha. E o ônibus se foi, com suas luzes internas apagadas. Por que desci antes? Queria caminhar um pouco. Queria pensar. Nada melhor, para deixar os pensamentos livres, do que flanar à uma e meia da manhã, numa terça-feira, no centro pouco movimentado de uma cidade como Santa Maria. Vagando por algumas das ruas principais, General Neto, José Bonifácio, Acampamento, onde os automóveis em trânsito rompiam vez que outra o silêncio. Curiosamente, apesar da noite, esta é a melhor hora: quando a publicidade, as vitrines, os anúncios, estão todos obscurecidos, e já não funcionam mais para nós como um cabresto. E não é tão perigoso quanto parece andar por ali, numa situação como a que eu estava. Ou pelo menos eu queria acreditar que não. Ou talvez até houvesse algum perigo, sim, um bêbado proferindo vulgaridades, um assaltante à espreita, mas mesmo assim estava disposta a apostar. Naquela noite, sim.
A aragem se emaranhava em meus cabelos, fazendo-os se confundirem com a noite. Atravessei a rua, sempre cuidando algum movimento que porventura fosse suspeito. E quando verificava que tudo estava bem, deixava o pensar livre de amarras. Dobrei uma esquina. Era aí que queria chegar. Na outra ponta da quadra, quase na esquina oposta, um velho prédio de quatro andares, onde um quarto, há muitos anos, havia sido um recanto de deleites. Desci do ônibus antes porque pretendia, justamente, passar por esse local, e bem devagar, para poder experimentar os sentimentos que aflorariam em virtude desse reencontro.
Pode ser que meu rosto tivesse se iluminado, refletindo o brilho que irradiava da sacada do primeiro piso. Meus dedos acariciavam o pingente. As lembranças que este pequeno objeto aprisionava começaram a retumbar. Segui em frente, com um nome latejando no coração, e mais uma vez o vento percorreu-me a alma. E voltei a esquecer as vicissitudes dos dias, o emprego, os horários de amanhã, as tarefas proteladas de ontem. E até os planejamentos comezinhos para o fim de semana, a rotina e as contas a pagar, as declarações, as opiniões alheias... tudo se consumia, agora que eu contemplava com meus olhos doces o velho apartamento.
Em manhãs de chuva ou sol, depois de dias de ausência, eu por ali chegava. Quase embriagada de desejo, cambaleava até o quarto. Ele me abria a porta, e eu entrava. Um ser robusto, fremindo das pulsões da plena juventude, resgatava as minhas penas. Fome, sede, frio, dor e cansaço, perdiam a sua solidez. Uma única carência permanecia. Seu peito em chamas se alimentava do meu fôlego. Nele me quedava, morria para o que até então havia sido, e, em seguida, renascia numa nova existência. O tempo morria, eu encostava de mansinho o nariz em seu pescoço, fechava os olhos, aspirava fundo aquele perfume que eu amava, e quando subia as pálpebras estava em outro lugar. Às vezes, numa plantação de trigo, num meio-dia radiante, com vestes frouxas, à deriva e sem nenhuma preocupação. Noutras, perdia-me numa planície ao crepúsculo, até divisar uma colina verdejante, onde deitava. E noutras, ainda, me via rodopiando numa pracinha, com olhos fixos no céu, as nuvens a me cobrir como um véu de seda e os ecos de risos infantis me envolvendo de todos os lados. Era aí que enchia meus pulmões de ar e baixava novamente as pálpebras, e, quando as subia, estava de volta ao quarto, com ele enroscado em mim e ofegante. E me abraçava forte como se fosse me perder. E sentia meu ser como uma rica totalidade de partes integradas, sem contradições ou antagonismos. E nessa hora eu sabia o que eu era; e era, da mesma forma, o que eu sabia.
*
Será que ainda moraria no velho edifício? Me deixava absorver nessa meditação e não era perturbada nem pelos faróis dos carros que passavam. Poderia ser que um dia alguém escrevesse esses momentos, para que sua duração se perpetuasse. Às vezes, pensava comigo que o gemido de prazer era um meio de prolongar o gozo. Será que com a escrita ocorreria o mesmo? Alguns parágrafos ou versos que imortalizassem o instante, como muitos já o fizeram. E quem se acercasse ao acaso desse registro, acharia aí um elixir de vida. Se um casal o encontrasse, se reconheceria nele. E se perceberia como mais um elemento dentro da longa constelação de amantes fora do tempo da qual fizemos parte. Quiçá teria maiores forças para viver e amar. E, finalmente, dessa maneira, aqueles que já se foram e que compartilharam do mesmo sentimento - inclusive nós, se já tivéssemos morrido -, viveriam de novo.
Sim, sei que, ao imaginar tais coisas, um sutil sorriso se abria em meu rosto, uma alegria branda me recobria. Pensar que a nossa época passaria. Passariam esta cidade, este país, esta economia e esta política. Sucumbiria à decomposição dos anos nossa forma de viver em sociedade. Revoluções transformariam os modos de nos organizarmos, de produzirmos, de trocarmos. Um grande cataclismo traria mares para onde hoje há terra e faria vir à tona novos continentes nos lugares em que residem os oceanos. Novas criaturas desejosas de mais e mais amor pululariam em torno do planeta. Algumas delas passariam os olhos numas linhas manuscritas, e, ao assim proceder, nos possibilitariam aspirar de novo ar puro. E saberiam que vale a pena. Respiraríamos todos, mortos e vivos, num mesmo ambiente. E assim seria enquanto houvesse quem fizesse de tal ação um meio de comunhão com todos os que se amaram na história, e que foram a antítese para as múltiplas formas de devastação criadas pelos homens. E se um dia, no final do tempo humano, a própria língua portuguesa se acabasse, aí, sim, quem sabe, o nosso amor de desfizesse como uma espiral de luz diáfana dentro do fluxo ininterrupto do universo em mutação.
*
Embalada em divagações, continuava a andar em direção à esquina, onde de novo teria de dobrar. Pelo outro lado da rua, passei em frente à porta do prédio que tanto amei. Um silêncio, luzes apagadas, janelas fechadas, nenhum carro passando. Vindo de alguma fresta da calçada, o som de um grilo. Segui, quase com dó de me despedir do lugar. E já outras lembranças me ocorriam, mas nenhuma com a mesma intensidade da primeira. Lugares que passamos, diálogos que travamos, livros, músicas, cafés, comidas, viagens feitas, a mãe dele, memórias de fatos corriqueiros que tinham cada uma a sua sensação, o seu prazer, a sua angústia, mas nenhuma que trouxesse o sublime comparável à reunião dos corpos. O dedilhar triste de um violão, vindo dos escaninhos da alma, me impelia a caminhar. E nas lembranças que retornavam, uma a uma, como as contas de um rosário, me detive em algumas, sem maiores emoções.
Como o dia em que o recebi em minha casa, que lhe preparei a melhor comida que sabia fazer, ele sentado na cozinha, abrindo o vinho e me observando cozinhar, olhando para o meu corpo de cima a baixo, cheio de desejo – eu fingia, é claro, que não via. E outro dia, ele, em minha casa, depois da bebedeira com os amigos. E o café-da-manhã que lhe servia na manhã seguinte. E uma ocasião, na casa de meus pais, em que coloquei um vestido e, sem calcinha por baixo, sentada numa cadeira, abri discretamente as pernas para que ele, sentado em frente, levasse um susto voluptuoso.
Dá pena pensar que desse amor não resta nada. Ora, mas por que é que tinha dias que gostava de mim e outros que não gostava? Por que é que umas vezes dizia que me queria e me procurava, e, noutras, me tratava de maneira tão indiferente? Por que, quando eu dizia que amava, ele se distanciava, e quando eu fechava a cara, e me fazia de desinteressada, ele vinha atrás de mim? Não fazia idéia de quanto isso maltratava meu coração? Fazia de propósito? Por que era tão inconstante, displicente, desleixado com meus sentimentos? O que se passava em sua cabeça? Quais os seus medos? Não tinha certeza, afinal, sobre o que queria? Não sei dizer, mas eu estava certa do que queria. Sabia, sim, que o amava. Por Deus, como o amava! Queria ter filhos com ele, queria uma casa, uma vida inteira, queria tudo! E quantas noites deitava em minha cama, à noite, e pensava nele até adormecer. Era algo que me fazia forte, quase invencível, e até os sacrifícios faziam sentido, e nada podia me deter, porque eu tinha poder para fazer o que quisesse! Mares, montanhas, penhascos, furacões, nada disso era páreo para mim. Não eram nem mesmo dignos de ser considerados obstáculos. Sei que algumas pessoas acreditam que o amor é como uma muleta, mas elas se enganam. O amor é vida em excesso. E nada mais natural, para uma criatura que se compreende existindo, do que afirmar, firme e decididamente, essa pulsante realidade.
*
E então chegou o fim, duas semanas após a última reconciliação. Já estava bastante esfolada por esses espetáculos de idas e vindas, de jogos de mal e bem-querer. Cheguei em casa e o encontrei me esperando, com a mochila pronta, olhando-me taciturno. Um suor frio me acometeu, uma vertigem, secura na garganta, como se estivesse a pressentir o golpe que adviria. E ele veio, seco:
_Andei pensando e acho melhor terminarmos, mesmo. Não quero um relacionamento como o nosso. Não vai dar certo. É melhor ficarmos só amigos.
Dizem que, acossadas pela morte, as pessoas podem ter as mais variadas reações. Há aquelas que estancam os movimentos e aguardam, atônitas, o indefectível golpe fatal. Outras, soltam um longo e assombroso grito, tal como o uivo de uma criatura selvagem. Há as que, por sua vez, ao perceberem a aproximação do derradeiro instante, tomam uma postura ativa perante ele, e se atiram em direção à morte de peito aberto, como se a acolhessem. E existem ainda as que, face às trevas, do corpo ou da mera razão, buscam algum sorrateiro subterfúgio, cortam-se com navalhas, perfuram a própria carne, infligem a si mesmas uma grande dor física, até que o sangue quente escorra pela pele, de modo a produzir o choque que lhes restaura a lucidez. Penso que comigo tenha se passado algo semelhante. Tive a impressão de que, de alguma forma, a hora extrema chegara. Com o término dos sonhos, extinguia-se-me a razão de existir. Como podia ser tratada assim, de repente, por alguém que era o vento que batia em minhas velas, e me conduzia a mim, nau venturosa, até continentes de banquetes e ilhas de celebrações? Que terror senti diante da horrível expectativa! De onde tiraria forças para resistir?
Eis que das entranhas, do fígado, do estômago, de alguma glândula que desconheço, subiu-me pelo interior algo como um líquido escaldante ou vapor em combustão, e foi como a explosão de um motor que desafoga. Me recusava a morrer, ali, daquele jeito. Não queria ser reduzida à condição de coisa, de um pedaço de lixo que é chutado por alguém cuja marcha atrapalha. Isto era, sem dúvida, o fim. Senti o vigor de uma fúria incontrolável, a fúria de quem se vê à beira da destruição e luta, de quem deseja desesperadamente a luz, o ar, o alimento, a vida. E contemplei então aqueles olhos meigos que me negavam vacilantes - olhos verdes que eu amava - e, empunhando toda a raiva exorbitante, disse não para essa morte que me abria os braços. Gritei-lhe coisas terríveis, grosserias, sandices, despautérios de todo tipo, que arrebentaram a mim e a ele, e levantaram, com os destroços produzidos, uma barreira entre nossos corpos que jamais se quebraria. Disse as amorosas crueldades que só se diz quando não se quer sucumbir ao aniquilamento do abandono e do desprezo, e que talvez sejam a prova negativa de algo grande que se perde. Não feri carne de minha carne, mas feri alma de minha alma. Paradoxalmente, quem sabe tenha sido essa a condição da minha conseqüente sobrevivência:
_Seu filho da puta! Desgraçado! Sem vergonha! Safado! Que é que tu pensa que eu sou? Heim?! Safado, filho da puta! Vai pra puta que te pariu! É isto mesmo que tu ouviu! Covarde! Vai à merda! Tu é um merda, um safado, um bosta! Tu não sabe o que tu quer? Maldita a hora em que eu te conheci! Mas eu me arrependo, viu?! Tu acha que eu sou o quê? Um pedaço de lixo que tu chuta e depois junta? Um pedaço de merda? Some daqui e não me aparece nunca mais! Um homem desse tamanho que não sabe o que quer! Que vergonha! O que é que tu é, afinal? Seu filho de uma puta desgraçada! Some daqui, seu merda! Seu lixo! Seu bosta! Idiota! Eu não quero te ver nunca mais na minha vida! Nunca! Sai da minha frente duma vez! Infeliz! Me esquece!
*
E passou um carro, e outro veio logo atrás. “Que grandes tolices”, pensei. E ia chegando finalmente na esquina onde teria que dobrar. Começava a achar estranho passar por aquele lugar de novo, depois de tanto tempo. E pensar que um completo acaso havia me impulsionado a retornar aí. Seria um espectro que me rondava? Mais certo, quiçá, seria dizer que era o eco do seu último uivo de agonia. Pois eu já havia redimido, por outro amor, a omissão antiga compartilhada para impedir uma vida genuína – a dois - de se afirmar.
Guardei de volta o pingente. E voltava ao devaneio anterior, o seu epílogo. Se alguém escrevesse essa história, a fim de dar a ela a persistência temporal que lhe permitisse tocar sensibilidades pósteras, que o fizesse relatando-a não só com sua felicidade, senão também com toda a sua aflição. Assim como do amor, também valeria a pena lembrar da dor. Daquilo que não foi, mas que poderia ter sido. Do vazio, enfim. E se um dia esse homem que amei pensasse em mim, se em alguma ocasião corriqueira qualquer, por exemplo, quando a brisa ou o som da chuva se infiltrasse em sua memória e acendesse a lembrança do meu nome - nome de que talvez já nem recordasse, mas que, pouco a pouco, com o persistir de um pulsar involuntário, pudesse ganhar intensidade e voltar a constituir forma etérea, até compôr a densidade e a potência de um pensamento claro -, desejaria que presentificasse em seu íntimo essa dor. Que minha imagem revivesse nele tal motivo. Não precisaria que fosse com a mesma inteireza ou profundidade. Que sentisse apenas uma tênue melancolia, originada do reconhecimento de uma oportunidade perdida: a de amar, e de viver esse amor. E é porque não guardava nenhum rancor que pensava desse jeito. E porque acreditava que só dessa maneira, em posse da consciência mais intransigente do fracasso, ele poderia encontrar a energia que lhe permitiria amar de novo e ser feliz.
E com tal meditação me despedia, um tanto ansiosa, de uma parte de mim que enfim morria, e também daquele lugar que agora se me aparentava tão sombrio. Dobrei a esquina. Pingos grossos de chuva e vento forte anunciavam a tempestade que adviria na madrugada. Uma pontinha de medo de andar naquela rua, àquela hora, apareceu. Decidi, pois, trocar um transitar noturno incerto por uma rápida corrida de táxi. Sem entender direito para onde havia ido a coragem aventureira que me impulsionara até poucos minutos atrás, dirigi-me até um ponto que havia uns metros adiante. Andei em direção ao carro, e, quando abri a porta, ouvi:
_Clara!
O som de uma inconfundível voz do passado clamou nesse momento em minha direção.
(Conchita de los Huevos)
terça-feira, 20 de julho de 2010
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